Juntas Médicas ou Provas de Resistência? O Testemunho de Anabele

Anabele tem 60 anos e vive em Loulé. A sua história não é única — e talvez por isso seja tão urgente. Em 2005, o pai sofreu um enfarte. Um ano depois, foi vítima de um AVC. Ficou acamado, sem mobilidade, sem fala, sem sequer conseguir manter-se sentado sem cair. E mesmo assim, foi chamado para uma junta médica. Sim, um homem cuja condição clínica era do conhecimento de hospitais, centros de saúde e médicos assistentes foi forçado a deslocar-se, imobilizado e em sofrimento, para ser avaliado como se fosse suspeito de estar doente. Como se a dor, por si só, precisasse de comprovação adicional.

No dia marcado, Anabele acompanhou o pai. Recorda:

“Foi um ato de absoluta falta de humanidade que surpreendeu e revoltou o próprio médico que o atendeu naquele dia. O meu pai gemia e chorava com dores. Escorregava da cadeira de rodas. Estava ali, amarrado pela urgência de cumprir um procedimento desnecessário.”

O impacto não foi apenas físico. Foi também moral.

“Senti revolta e muita frustração. Senti que, realmente, em certas áreas, vivemos num país do terceiro mundo.”

A pergunta é inevitável: porquê?

Por que razão um sistema de avaliação continua a desconfiar da palavra e da documentação médica validada por profissionais de saúde do SNS? Por que razão um doente nestas condições não é avaliado no domicílio — como, aliás, a própria lei prevê?

A resposta pode estar no descrédito institucional que se instalou: uma burocracia que desconfia dos próprios médicos e empurra doentes e famílias para um circuito kafkiano. Um sistema que parece esquecer que a dignidade humana está acima de qualquer protocolo.

Para Anabele, a solução passa por algo muito simples: cumprir a lei. “Como a Anabela disse no programa da tarde (TVI), se o sistema desconfia dos médicos, então que a junta médica vá ao encontro do doente e ateste da veracidade da sua condição. Não se pode exigir a um corpo em dor que se levante para provar o que está à vista.”

Este testemunho é um apelo. Não só à empatia, mas à responsabilidade institucional. A proposta de transformar as juntas médicas em auditorias de saúde — orientadas pela confiança e não pela suspeição — ganha aqui um rosto, uma história, uma urgência.

Em nome do pai de Anabele. E de tantos outros.


Este artigo integra a série “Vozes de Injustiça”, resultante dos testemunhos recolhidos pela Petição Pública por um Sistema de Avaliação Médica mais Justo e Humano. Se quiser partilhar a sua história ou apoiar esta iniciativa, visite www.etiologia.pt.

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