“Disseram-me que estava curada” – O Silêncio e a Violência Institucional em Doença Oncológica
Fátima tem 44 anos e vive em Vila Nova de Gaia. Aos 36 foi-lhe diagnosticado um cancro da mama com metástases hepáticas — um cancro metastizado, crónico, incurável. Desde então, nunca mais teve paz. Nem no corpo, nem na alma. Nem no sistema.
Durante três anos esteve de baixa médica. Era chamada de três em três meses, no mínimo. As juntas sucediam-se como relógio, sem qualquer cuidado com o diagnóstico. Em nenhuma delas foi avaliada por um médico oncologista. Em algumas, ouviu perguntas absurdas. Noutras, insinuações: “Ai ai, onde foi arranjar isto?” — como se a doença fosse uma escolha.
Entrou num ensaio clínico. O tratamento não lhe fazia cair o cabelo. Isso bastou para levantar suspeitas. A aparência tornava-se argumento para desacreditar relatórios médicos detalhados. A doença era invisível aos olhos que não queriam ver.
Foi-lhe atribuído um atestado multiusos com 80% de incapacidade. Reformaram-na por invalidez, com uma pensão de 450 euros, após uma vida inteira de trabalho desde os 16 anos. Pelo menos, com essa percentagem, teve acesso à Prestação Social para a Inclusão.
Mas em novembro de 2024 foi novamente chamada. Nova junta. Nova violência.
Desta vez, três médicas decidiram baixar-lhe a incapacidafátimade para 66%. 60% pela condição oncológica. 6% pela mastectomia. Disseram-lhe que estava curada.
Curada.
A palavra ecoa como ofensa. Porque um cancro metastizado não tem cura. Porque o que foi retirado — a mama, a saúde, a tranquilidade, a autonomia — não se repara com percentagens.
“Saí dali frágil. Disseram-me que estava curada quando não corresponde à verdade. Só o fizeram para poupar uns trocos à Segurança Social.”
Hoje, Fátima vive com uma depressão grave. Sente-se sustentada pelo marido. Tem uma filha de 16 anos. E tudo o que queria era um pouco de tranquilidade — não andar constantemente a tratar de papéis para justificar o que o próprio sistema já reconheceu no passado.
Não pede privilégio. Pede justiça. Pede um sistema onde as juntas médicas incluam pelo menos um especialista na patologia em causa. Onde se fale menos de tecnologia abstrata e mais de humanidade concreta. Porque, como diz Fátima, “não faz sentido” — nem ter de se defender da própria doença, nem ter de implorar reconhecimento.
Este testemunho é um espelho. Mostra o que acontece quando a desconfiança institucional se sobrepõe à compaixão clínica. Quando o cansaço das pessoas doentes é agravado por um sistema que devia protegê-las — não traumatizá-las.
Este artigo integra a série “Vozes de Injustiça”, resultante dos testemunhos recolhidos pela Petição Pública por um Sistema de Avaliação Médica mais Justo e Humano. Se quiser partilhar a sua história ou apoiar esta iniciativa, visite www.etiologia.pt.
Maio 16, 2025