Juntas Médicas em Semana de Quimioterapia: Quando o Sistema Ignora o Óbvio
João tem 49 anos e vive em Viseu. Em 2023, foi-lhe diagnosticado cancro no intestino. Foi operado de urgência. O pós-operatório não trouxe descanso — trouxe quimioterapia, a cada duas semanas. Quem já passou por este processo sabe: o corpo ressente-se, o frio queima, as extremidades ficam dormentes, o sistema imunitário colapsa. E mesmo assim, João foi chamado a pelo menos cinco juntas médicas.
Algumas dessas convocatórias coincidiram com semanas de quimioterapia.
“É desumano uma pessoa estar de tal forma debilitada e ter de se deslocar 20 km, ainda por cima no inverno, para lá ir mostrar uma coisa que é óbvia.”
Não foi um erro pontual. Foi um padrão. Um sistema indiferente à evidência clínica. Um sistema que, no lugar de proteger, exige provas adicionais. Mesmo perante diagnósticos claros, cirurgias realizadas, tratamentos intensivos em curso.
“Durante a quimioterapia, fui chamado várias vezes. Aquilo parece copy-paste.”
A crítica não é à existência das juntas médicas. João reconhece a sua utilidade para prevenir fraudes. Mas sublinha: há situações em que insistir na avaliação presencial não é apenas ineficaz — é uma ofensa. “Em casos óbvios, é uma estupidez. É falta de respeito.”
E sublinha com precisão aquilo que deveria ser princípio orientador: o respeito pela dignidade de quem já está a atravessar um dos processos mais difíceis da vida. O respeito por quem se levanta entre sessões de quimioterapia para cumprir uma formalidade que em nada contribui para o seu bem-estar — apenas para a manutenção de um sistema despersonalizado.
As consequências deste modelo são mais do que burocráticas. São físicas, emocionais e sociais. João descreve os efeitos prolongados da quimioterapia: dormência constante nos pés e mãos. Mas a ferida mais profunda talvez seja esta: a sensação de estar a ser tratado como número. Como se a dor não bastasse. Como se fosse necessário provar, reiteradamente, que está doente.
Este testemunho, lúcido e contundente, é um apelo à racionalidade e à compaixão. À capacidade de distinguir entre controlo e crueldade. À necessidade de transformar as juntas médicas em verdadeiras auditorias de saúde — com critério, especialização e humanidade.
Este artigo integra a série “Vozes de Injustiça”, resultante dos testemunhos recolhidos pela Petição Pública por um Sistema de Avaliação Médica mais Justo e Humano. Se quiser partilhar a sua história ou apoiar esta iniciativa, visite www.etiologia.pt.
Maio 16, 2025