Quando a Dor é Desacreditada: A História de Carla e a Fibromialgia Silenciada

Carla tem 49 anos. Vive em Alenquer. O nome é real, a dor também. E, como tantas outras mulheres com diagnóstico de fibromialgia, Carla aprendeu a viver com dois pesos: o do sofrimento físico e o do descrédito institucional.

Em 2017 ou 2018 — já não sabe precisar, porque a memória fica embaciada com o trauma — foi chamada à junta médica. Sofria de fibromialgia, uma condição crónica reconhecida pela Organização Mundial da Saúde, mas ainda marginalizada por muitos profissionais em Portugal. O que viveu nesse dia não foi avaliação. Foi humilhação.

“Fui enxovalhada, saí lavada em lágrimas. Disseram-me que aquilo não era doença e que devia procurar ajuda na psiquiatria.”

Na vez seguinte, saiu da junta numa ambulância — diretamente para o hospital de Torres Vedras. À terceira, foi-lhe atribuída alta. Motivo? A fibromialgia não era considerada uma doença suficiente para justificar a sua condição. Não importava a dor generalizada, a fadiga incapacitante, as noites sem dormir. Nem o facto de precisar do pai para a levar, porque já não conseguia conduzir.

Carla tinha um estabelecimento familiar, que acabou por encerrar. Tentou reerguer-se e trabalhou, durante três meses, num centro de saúde. Foi à custa de injeções. Desistiu. Não por falta de vontade, mas porque o corpo não resistia. Desde então, está sem médico de família, sem respostas, sem apoio do Estado.

“Estou cansada de gastar dinheiro em tratamentos que não ajudam. Nunca mais consegui trabalhar.”

Este testemunho é mais do que um relato. É uma denúncia. De um sistema que ridiculariza, que descredibiliza a dor feminina, que se esconde atrás de pareceres contraditórios e falta de formação especializada. Carla não pede piedade. Pede justiça.

Quando lhe perguntam o que mudaria nas juntas médicas, a resposta é clara: tudo. Tudo, incluindo os próprios médicos. E insiste: mais humanidade, mais assertividade. Formação específica sobre doenças como a fibromialgia. Porque não se pode avaliar o que não se conhece. E não se pode humilhar quem já vive numa guerra diária com o próprio corpo.

A proposta de transformar as juntas médicas em auditorias de saúde não é apenas uma ideia reformista. É uma exigência ética.

Em nome da Carla. E de tantas outras mulheres cujas dores continuam a ser silenciadas porque não cabem nos critérios que o sistema reconhece.


Este artigo integra a série “Vozes de Injustiça”, resultante dos testemunhos recolhidos pela Petição Pública por um Sistema de Avaliação Médica mais Justo e Humano. Se quiser partilhar a sua história ou apoiar esta iniciativa, visite www.etiologia.pt.

category

date